Sobre pastéis e virados de banana
Dentro de mim a comida tem conexões profundas com o ato de contar histórias. Quando compartilhamos o que comemos e estamos presentes verdadeiramente, as histórias fluem feito riacho que corre em direção ao mar. Às vezes são calmaria, outras vezes, correntezas. Às vezes são águas rasas, outras são profundezas. Na roda de conversa promovida pela Casa Tombada com o Mestre Francisco Gregório, fomos convidados a compartilhar uma receita de família. O sábado frio de outono foi aquecido pelas narrativas acompanhadas de saudades. Memórias que trouxeram cheiros, sabores, afetos e aproximou nossas distâncias.
Quando recebi esta missão de
dividir algo da minha família logo pensei nos pastéis que minha mãe faz. Não por
serem iguarias requintadas ou receitas que guardam segredo de Estado mas, por
serem os pastéis de minha mãe. Criança, quando ela anunciava que faria pastéis
era sempre uma festa. Um alvoroço entre os sete filhos, dos quais, eu sou a
mais velha. A mesa transformava-se em tabuleiro. A farinha esparramava-se criando
um leito para abrigar os quitutes. O recheio era sempre o mesmo, carne moída
com batatas. Vez ou outra também tinha pastel de queijo. Quando acabava o
recheio, minha mãe cortava o restante da massa em tirinhas, que eram fritas e
que nós chamávamos de “orelha de padre”. Brinquedo infantil era adivinhar as
formas que as orelhas de padre fritas ganhavam: olha vou comer uma girafa! E eu
uma guitarra! Vou comer um rabicó de porco! E eu um gato esticado!
Na sexta que antecedeu o encontro,
liguei para minha mãe e perguntei como fazia os pastéis. Insegurança de quem
sente responsabilidade em reproduzir receita afetiva. Minha mãe foi dizendo:
“Você coloca o trigo, um tanto de óleo, um pouco de fermento, o sal e a
cachaça.” Socorro mãe! Que tanto é esse?
Ela riu e me perguntou quantos pastéis eu pretendia fazer. Revelei
motivo e quantidade, para um encontro virtual, seriam apenas alguns. Então a
receita ganhou as medidas: “para 1/2kg de trigo, coloque 2 colheres de óleo,
uma colher rasa de fermento em pó, uma colher de cachaça (eu coloquei duas e um
choro) e uma pitada de sal, a seu gosto. Vá acrescentando água e mexa a massa
até desgrudar das mãos. Se for necessário, coloque mais trigo. Deixe a massa
descansar no mínimo 30 minutos (eu deixei por uma hora, para garantir).”
Segundo meus irmãos, quanto mais a massa descansar, mais crocante ficará.
Segundo meu marido (que é chef de cozinha) quanto mais a massa descansar, mais
fácil será manipulá-la. Minha mãe continuou: “Olha que é preciso colocar
farinha na mesa para que a massa não grude, hein!”.
Minha receita rendeu vinte
pastéis, algumas orelhas de padre, a lembrança de muitas histórias e um tanto
de alegrias. Fiquei emocionada no preparo. É que, mesmo distante, senti a
presença de minha família. Pensei no trabalho que minha mãe tinha em preparar
pastéis para tanta gente pois, além dos sete filhos, a criançada da vizinhança
dava um jeito de aparecer, chamadas pelo aroma que se espalhava no ar. E ainda
tinha que sobrar para o dia seguinte pois, meu maior prazer, era comer o pastel
amanhecido com um copo de café, logo eu, que acho estranhas muitas combinações
feitas com a bebida.
Não pense você que parou por aí.
Quando liguei para minha mãe pedi também a receita do virado de bananas, um
doce que a gente ama em casa e que comemos, por exemplo no café da tarde, ou
quando bate a fome entre as refeições. Este não teve jeito, a medida foi no
olhômetro, como dizemos lá em casa, a partir do tanto que eu tinha, uma banana
nanica bem madura e pequena. O virado é bom de ser feito com bananas muito
maduras. Corte-as em rodelas, coloque na panela com um fio de óleo quente.
Acrescenta açúcar e mexa, até derreter. Se tiver queijo minas, fica uma delícia
picar em pedacinhos e colocar para derreter junto. Depois é só acrescentar a
farinha de milho amarela e mexer. Quando a farinha absorver todo o líquido é só
desligar. O virado de banana é uma delícia quentinho, porque ainda está bem
molinho porém, depois que esfria, ele ganha consistência, fica firme e é bom
também! Eu, na minha empolgação de menina fazedora das receitas da mamãe,
esqueci que só tinha uma banana e exagerei no açúcar. Não teve problema, comi
mesmo assim.
Ganhei fama entre meus irmãos
porque contava quantos pastéis tinha e quanto cada um teria direito, para que
ninguém comesse mais que o outro. Isso valia para tudo o que fosse em pedaços (pastéis,
bolinhos, bifes), coisas de irmã mais velha. Entretanto, o virado de banana não
permitia esse controle portanto, era bom ficar esperto. Todo mundo tinha
garantido o seu primeiro bocado, mas na repetição, puxa vida, cada um por si.
Era bem fácil encontrar alguém num canto da casa com as mãos para trás, a boca
cheia, os olhos preocupados. E se perguntassem “o que tem aí?” Era bem capaz
de, com maior cara de pau, a pessoa responder: “Nada não”.
Terminei o encontro de sábado
pensando na beleza que é perpetuar nossas receitas de família, ainda que sejam
simples. Elas se tornam especiais porque carregam nossas histórias e nos
conectam com uma rede de afetos que é ancestral. Pulsam e vibram cheiros,
sabores, encontros, despedidas, sorrisos. Nossas receitas são guardiãs de
memórias amorosas. Velhas senhoras que moram em caderninhos bordados, escritos
à mão ou ainda, que habitam a transmissão feita de boca, experimentada na troca
do fazer ou do rememorar. Celebremos nossas receitas afetivas!
Mesa partilhada, história contada!
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